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sexta-feira, setembro 27, 2013

O Incriado - Vinicius de Moraes

Distantes estão os caminhos que vão para o Tempo - outro luar eu vi passar na altura 
Nas plagas verdes as mesmas lamentações escuto como vindas da eterna espera 
O vento ríspido agita sombras de araucárias em corpos nus unidos se amando 
E no meu ser todas as agitações se anulam como as vozes dos campos moribundos. 

Oh, de que serve ao amante o amor que não germinará na terra infecunda 
De que serve ao poeta desabrochar sobre o pântano e cantar prisioneiro? 
Nada há a fazer pois que estão brotando crianças trágicas como cactos 
Da semente má que a carne enlouquecida deixou nas matas silenciosas. 

Nem plácidas visões restam aos olhos - só o passado surge se a dor surge 
E o passado é como o último morto que é preciso esquecer para ter vida 
Todas as meias-noites soam e o leito está deserto do corpo estendido 
Nas ruas noturnas a alma passeia, desolada e só em busca de Deus. 

Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar batendo 
No entanto como está longe o mar e como é dura a terra sob mim... 
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema fraqueza 

E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques onde a primavera é eterna. 
Na memória cruel vinte anos seguem a vinte anos na única paisagem humana 
Longe do homem os desertos continuam impassíveis diante da morte 
Os trigais caminham para o lavrador e o suor para a terra 
E dos velhos frutos caídos surgem árvores estranhamente calmas. 

Ai, muito andei e em vão... rios enganosos conduziram meu corpo a todas as idades 
Na terra primeira ninguém conhecia o Senhor das bem-aventuranças... 
Quando meu corpo precisou repousar eu repousei, quando minha boca ficou sedenta eu bebi 
Quando meu ser pediu a carne eu dei-lhe a carne mas eu me senti mendigo. 

Longe está o espaço onde existem os grandes vôos e onde a música vibra solta 
A cidade deserta é o espaço onde o poeta sonha os grandes vôos solitários 
Mas quando o desespero vem e o poeta se sente morto para a noite 
As entranhas das mulheres afogam o poeta e o entregam dormindo à madrugada. 

Terrível é a dor que lança o poeta prisioneiro à suprema miséria 
Terrível é o sono atormentado do homem que suou sacrilegamente a carne 
Mas boa é a companheira errante que traz o esquecimento de um minuto 
Boa é a esquecida que dá o lábio morto ao beijo desesperado. 

Onde os cantos longínquos do oceano?... Sobre a espessura verde eu me debruço e busco o infinito 
Ao léu das ondas há cabeleiras abertas como flores - são jovens que o eterno amor surpreendeu 
Nos bosques procuro a seiva úmida mas os troncos estão morrendo 
No chão vejo magros corpos enlaçados de onde a poesia fugiu como o perfume da flor morta. 

Muito forte sou para odiar nada senão a vida 
Muito fraco sou para amar nada mais do que a vida 
A gratuidade está no meu coração e a nostalgia dos dias me aniquila 
Porque eu nada serei como ódio e como amor se eu nada conto e nada valho. 

Eu sou o Incriado de Deus, o que não teve a sua alma e semelhança 
Eu sou o que surgiu da terra e a quem não coube outra dor senão a terra 
Eu sou a carne louca que freme ante a adolescência impúbere e explode sobre a imagem criada 
Eu sou o demônio do bem e o destinado do mal mas eu nada sou. 

De nada vale ao homem a pura compreensão de todas as coisas 
Se ele tem algemas que o impedem de levantar os braços para o alto 
De nada valem ao homem os bons sentimentos se ele descansa nos sentimentos maus 
No teu puríssimo regaço eu nunca estarei, Senhora... 

Choram as árvores na espantosa noite, curvadas sobre mim, me olhando... 
Eu caminhando... Sobre o meu corpo as árvores passando... 
Quem morreu se estou vivo, por que choram as árvores? 
Dentro de mim tudo está imóvel, mas eu estou vivo, eu sei que estou vivo porque sofro. 

Se alguém não devia sofrer eu não devia, mas sofro e é tudo o mesmo 
Eu tenho o desvelo e a bênção, mas sofro como um desesperado e nada posso 
Sofro a pureza impossível, sofro o amor pequenino dos olhos e das mãos 
Sofro porque a náusea dos seios gastos está amargurando a minha boca. 

Não quero a esposa que eu violaria nem o filho que ergueria a mão sobre o meu rosto 
Nada quero porque eu deixo traços de lágrimas por onde passo 
Quisera apenas que todos me desprezassem pela minha fraqueza 
Mas, pelo amor de Deus, não me deixeis nunca sozinho! 

Às vezes por um segundo a alma acorda para um grande êxtase sereno 
Num sopro de suspensão a beleza passa e beija a fronte do homem parado 
E então o poeta surge e do seu peito se ouve uma voz maravilhosa, 
Que palpita no ar fremente e envolve todos os gritos num só grito. 

Mas depois, quando o poeta foge e o homem volta como de um sonho 
E sente sobre a sua boca um riso que ele desconhece 
A cólera penetra em seu coração e ele renega a poesia 
Que veio trazer de volta o princípio de todo o caminho percorrido. 

Todos os momentos estão passando e todos os momentos estão sendo vividos 
A essência das rosas invade o peito do homem e ele se apazigua no perfume 
Mas se um pinheiro uiva no vento o coração do homem cerra-se de inquietude 
No entanto ele dormirá ao lado dos pinheiros uivando e das rosas recendendo. 

Eu sou o Incriado de Deus, o que não pode fugir à carne e à memoria 
Eu sou como velho barco longe do mar, cheio de lamentações no vazio do bojo 
No meu ser todas as agitações se anulam - nada permanece para a vida 
Só eu permaneço parado dentro do tempo passado, passando, passando...

quinta-feira, setembro 26, 2013

Anjo Triste

Anjo de minhas trevas
Tu és minha vela obscura
De uma manhã cinzenta 
Descubro que teu amor
É efêmero em meu coração.

Tu que em mim nada tinhas
Não passavas de uma grande ilusão
Descubro que teu amor
É efêmero em meu coração

Tu não foste o amor que tanto sonhei
Que na fuga de meus sonhos tanto esperei.
Por fim, eu descubro que o teu amor
É e sempre será passado de uma triste canção.